quarta-feira, 10 de janeiro de 2018

Sobre o adolescente amazonense e a cura da raiva

Ano passado (2017) um sem-número de pessoas que vivem na Reserva Extrativista da Comunidade Tapira do Rio Unini em Barcelos-AM (mais de 400 Km de distância de Manaus) estavam sob risco de raiva transmitida por morcegos hematófagos. Na mesma família, TRÊS irmãos foram infectados. Dois morreram. Mateus Castro, de 14 anos, sobreviveu "graças ao Protocolo de Milwalkee". Este protocolo ainda é experimental, sendo utilizado em casos de raiva humana em que não houve o devido tratamento profilático pós-exposição (soro antirrábico e quatro doses de vacina antirrábica - nos dias 0, 3, 7 e 14 - no caso da mordedura por morcegos).  Quando um caso de raiva humana chega à cura, significa que o paciente, além de sobreviver, também não possui mais o vírus em seu sistema nervoso central. Mas veja, o vírus da raiva já tinha chegado lá no cérebro. Já causou danos, muitas vezes irreversíveis. O que será deste menino no "pós-raiva"? Será mais um brasileiro curado, um sucesso para a medicina, porém mais um "Marciano"? 

Marciano Menezes da Silva foi o primeiro brasileiro curado da raiva, em 2008. No ano de 2007 ele foi agredido por morcego, não recebeu a profilaxia antirrábica pós-exposição, porém recebeu o Protocolo de Milwalkee modificado ou Protocolo de Recife. UM PACIENTE BRASILEIRO SOBREVIVEU À RAIVA!!!! Mas como está sobrevivendo hoje, de volta ao sertão de Pernambuco? Como é a assistência "pós-raiva" em Floresta-PE? Me pergunto várias vezes "o que é sobreviver à raiva?". Conforme a reportagem de 2016, Marciano disse que seu "maior sonho é voltar a andar". O que é sobreviver?
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Voltando a Barcelos-AM, não custa lembrar que foram necessárias DUAS MORTES de irmãos para que a população sob risco finalmente tivesse acesso à profilaxia. Os óbitos foram registrados em Manaus em 02 e 16 de novembro e só no dia 05 de dezembro as doses de vacina e soro chegaram a Barcelos! Pensando que o período de incubação médio da raiva em humanos é de aproximadamente 45 dias, é possível que esta família tenha sido agredida pelos morcegos e infectada com o vírus da raiva ainda em AGOSTO ou SETEMBRO. E a profilaxia para a comunidade chegou em DEZEMBRO. Foram necessárias duas mortes na mesma família para que os órgãos de saúde se mobilizassem de verdade, com praticamente quatro meses de atraso. É desanimador tamanho descaso!

A região amazônica é rica em biodiversidade porém também está sob a ameaça constante de desequilíbrios ambientais. Um estudo de 1980 já falava da importância epidemiológica de morcegos hematófagos na região, já alertando que "concernente à prevenção da raiva humana é a criação acidental de micro-habitats para morcegos hematófagos na forma de áreas preservadas com abrigos adequados na colonização de regiões florestais onde a raiva silvestre é prevalente", e enfatizando as características ecológicas que podem favorecer a permanência destes nas áreas habitadas por humanos. A Reserva Extrativista da Comunidade Tapira do Rio Unini em Barcelos-AM talvez nem seja tão preservada assim e, para que os hematófagos optem por atacar pessoas, é bem possível que haja falta de alimento melhor para os morcegos, ou seja, pela falta de outras espécies animais os morcegos passaram a espoliar pessoas. Imagine a falta de estrutura de um local desses? Onde nem a saúde chegou oportunamente?!

Também não custa lembrar que ainda em 2017 as cidades de Salvador-BA e Recife-PE foram focos de raiva em morcegos hematófagos (que nem deveriam habitar áreas urbanas!! Veja o desequilíbrio ambiental!) e em Recife ocorreu um óbito humano devido à variante do vírus da raiva que circula em morcegos hematófagos (variante 3), porém transmitida por um gato. O gato havia entrado em contato com o morcego, foi infectado com o vírus da raiva e acabou transmitindo a doença para a pessoa através de mordedura. A pessoa não buscou atendimento oportunamente... Óbito.

Mais lembranças de 2017, tivemos a modificação no protocolo da vacina antirrábica pós-exposição, que era de cinco doses e passou a ser de quatro. É óbvio que a justificativa são os "estudos recentes comprovando que quatro doses já são suficientemente protetoras", não precisa mais da quinta dose.  Nada disso tem a ver com o desabastecimento de vacinas e a crise na produção de imunobiológicos, incluindo soro antiofídico, soro antirrábico, vacina de febre amarela, vacina antirrábica... Não, nada tem a ver com isso! Até mesmo o novo protocolo da vacina de febre amarela, que era uma dose a cada 10 anos se tornou esta mesma dose para a vida toda! E em 2018 podemos fazer apenas 1/4 da dose que protegerá por 8 anos! Fantástico! Mas são os estudos recentes que indicam isso. Estamos seguros e podemos ficar tranquilos com os novos protocolos de imunização! E pensar que o Brasil já foi referência em imunização! Que saudade do PNI!

Lembrando também que 2017 foi o ano da "revolta" da sífilis, não só pela falta de cuidados e uso de preservativos pelas pessoas mas também pela falta de penicilina para tratar os pacientes! E o brasileiro segue não se protegendo, não se prevenindo e NÃO SE TRATANDO. Ou porque não sabe, ou porque NÃO TEM!

E assim segue nosso sistema nada preventivo, totalmente assistencial, com o perfil de "apagar incêndios" da saúde. São tantos os exemplos, como a raiva canina em Corumbá-MS, a febre amarela no Sudeste, a entrada do Zika e a explosão do Chikungunya... e tantos outros. Infelizmente isso deixa claro que nossos gestores estão mais preocupados com a "política" do que com o cidadão ou a gestão da saúde.

Guarde este rosto. Este é Mateus Castro antes da raiva. (Foto da reportagem do G1)


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