domingo, 2 de outubro de 2011

Aftosa (Py), Toxo (MT e RO), Alimentos (MS)... O que está acontecendo? (como investigar uma epidemia?)

Recentemente noticias de surtos têm surgido em diversos lugares relativamente próximos a mim (Aftosa: Paraguai. Raiva urbana e toxinfecção alimentar: Campo Grande/MS. Toxoplasmose: Cuiabá/MT e Ji-Paraná/RO...), o que me motiva a pensar / questionar:
1) O que está acontecendo?
2) Como investigar ?
3) Como controlar?
 

Antes de tentar explicar o que está acontecendo, decidi falar sobre como são feitas as investigações em epidemias. Baseadas em epidemiologia descritiva e analítica, são a verdadeira resolução de quebra-cabeças pelos pesquisadores, cientistas e agentes de saúde.

Primeira coisa é definir o que é surto - ou epidemia. Epidemiologicamente, significa a ocorrência de uma doença (ou evento em saúde) numa frequência - número de casos - acima do esperado para aquela população em uma região em um relativo curto período de tempo. Lembrando, pandemia significa uma epidemia que conseguiu se espalhar por diversos territórios. Diversas razões / fatores podem contribuir para a ocorrência de um surto, mas as condições sine qua non para que aconteça são: existência de indivíduos suscetíveis e facilidade de transmissão. Assim, epidemia = incidência em curto período de tempo (taxa de ataque)! Um surto pode acontecer devido à mutação de agentes, como ocorreu recentemente com os Influenzavírus H1N1 e H5N1; aumento da densidade de 'partículas contaminantes ou infectantes' ou da concentração de partículas infectantes, como em casos de toxinfeção alimentar - as "salmoneses"; o caso de 180 crianças com toxinfecção alimentar em Campo Grande-MS no último dia 27 (ainda sob investigação) e as E. coli alemãs - e casos de doenças veiculadas por água - como o "super surto" de toxoplasmose veiculada por água em Santa Isabel do Ivaí-PR entre 2001 e 2002.  Surtos ocorrem também por associação de mutação / resistência e densidade de partículas, como nas infecções hospitalares (ou nosocomiais) - as multirresistentes KPC, as E. coli superpoderosas, os Staphylococcus MRSA, produtores de biofilme e por aí vai... 

Lembrando que agentes emergentes e reemergentes também são importantes "fontes epidêmicas", como acontece com a SARS em alguns lugares do mundo e, atualmente com a dengue no Brasil (e pensar que essa doença já foi controlada nas eras de Oswaldo Cruz x Febre Amarela!) ou a tuberculose humana... estaremos nós voltando aos tempos parnasianos? Outra informação importante para caracterizar surtos é a da característica da doença. A doença pode ter a forma clássica, como normalmente vista e descrita (aguda / febril...), ou ainda induzir sinais clínicos diferentes do usual, chamada de doença atípica. As atípicas podem apresentar diferenças das típicas que variam de período de incubação mais curto, sinais clínicos mais severos, maior morbimortalidade, letalidade... Neste caso, um bom exemplo é a pandemia de gripe. O Influenza, por infectar tanto epitélio respiratório superior e inferior e dificultar a resposta imune, facilitou as infecções bacterianas secundárias que contribuiram com a morte das pessoas).
 
Para investigar uma epidemia, a primeira coisa é colocar a mão na massa e a cabeça na epidemiologia descritiva: determinar se o que está acontecendo é mesmo uma epidemia (!!). Para tanto, algumas importantes interrogações devem se transformar em pontos (ou exclamações). A primeira mais importante lição da epidemiologia (do inglês, 5 W's - who / what / where/ when / why?): Quem? O quê? Quando? Onde? Por que? e inclua-se Quantos (casos). E sobre a população, pergunta-se quais sinais e sintomas relatados; a área de abrangência e faixa(s) etária(s) envolvidas; a ligação entre os casos - fonte de infecção ou agente causador em comum. A questão mais complexa é "qual é o problema" e a resposta depende de um acurado sistema de vigilância associado ao diagnóstico clínico e detecção e investigação laboratorial.   Parece muito simples determinar as informações, mas fatores confundidores podem ocorrer como a presença de doenças concomitantes com os mesmos sinais clínicos (diagnótico diferencial!); diferenças no diagnóstico, como diagnóstico clínico associado ou não ao uso de técnicas / métodos por diferentes labortórios; sistema de vigilância utilizado - ativa? passiva? critérios do sistema de vigilância?   Como brincam no Blog do CDC (veja referências abaixo), esta é a parte CSI / Sherlock Holmes do investigador. Se o laboratório for tipo Top-CDC, o investigador terá o superaparato para detecção de doenças como hantavirose, legionelose, febre do oeste do nilo, ebola, e SARS. No Brasil, muitas vezes contamos apenas com um cinturão de utilidades e o bom senso das autoridades.   

A segunda coisa para determinar uma epidemia é responder: o que é CASO? Brincadeiras à parte, a definição de caso é primordial para incluir ou excluir indivíduos no surto, ou seja, dependendo da definição de caso  / critérios de inclusão, a incidência aumenta ou diminui e também são alteradas as ações curativas e/ou preventivas ao surto. Ao se definir o que é caso, são agrupadas as características em comum de todos os casos que fizeram parte desta epidemia e, por conseguinte, sabe-se quais foram as faixas etárias / sexo / raça / localização... dos indivíduos acometidos. Definir o caso é a padronizar a identificação de casos, sejam antigos, novos ou futuros, e pode esta definição pode basear-se em sinais clínicos associados ou não a testes laboratoriais. A boa definição começa incluindo todos os casos em potencial, como os que possuem sintomatologia atípica e, ao longo de uma investigação - sobretudo em doenças emergentes / desconhecidas / exóticas - a definição de caso pode ser mais restrita, "afunilando" os realmente doentes e excluindo outras causas. No Brasil, por exemplo, os critérios de caso para dengue, doença infelizmente bem comum, descritos no Guia de Vigilância Epidemiológica (MS, 7ed., 2009) diferenciam, baseados em sinais clínicos, os suspeitos de Dengue Clássico de suspeitos de Febre Hemorrágica do Dengue (FHD), e depois diferenciam também os casos confirmados em clássico, com complicações, FHD e casos descartados. No DATASUS / SINAN os dados aparecem classificados como clássico, com complicações, FHD, síndrome de choque do dengue ou inconclusivo. São todos casos de dengue, porém cada caso com uma definição inicial e depois final. E ainda, como doença de notificação compulsória, os casos suspeitos e confirmados devem ser comunicados - apesar da subnotificação, ainda vivenciamos epidemias...  

O terceiro passo é a "formulação de hipóteses". As H0 e H1, tão temidas nas disciplinas de metodologia de pesquisa mundo afora e primordiais na investigação epidemiológica. Nesta etapa entra na ativa a epidemiologia anlítica, na tentativa de formular perguntas sobre a causa da doença baseadas na seguinte equação: 
(toda a descritiva acima + conhecimento prévio de doenças + intuição + senso) = hipótese  

Esta equação derivará outra: 
(hipótese ou exposição ao fator de risco = casos)  

Basicamente é a fase de pensar, hipotizar e comprovar: juntar toda a informação e, no melhor estilo House, associar causa e efeito (ou: testar a hipótese). Em casos de epidemia, para determinar os padrões e causas da doença, uma das melhores táticas é lançar mão de estudos de caso-controle utilizando dados confiáveis, ou seja, obtidos das mesmas fontes clínicas, laboratoriais etc., tanto para os casos quanto para os controles. Lembrando, controles são indivíduos com as mesmas características dos casos porém não foram acometidos. 

Neste momento é que começam as famosas tabelinhas 2x2 (ou mais!), na tentativa de estimar se os fatores de risco aos quais os casos estão expostos realmente (estatisticamente!) favorecem a ocorrência da doença. Esta investigação é baseada em fatores descritos principalmente em prontuários médicos ou em questionários padronizados aplicados aos indivíduos casos e controles, seguido da análise dos dados. Em caso-contole, busca-se o fator de exposição e as análises são geralmente o qui-quadrado seguido de Odds Ratio ("razão de chances"). [Só um parêntese entre colchetes, apesar de Odds Ratio ser, em portugês, chamado de "razão de chances", nada em a ver com a chance - sorte, e sim com a probabilidade do evento ocorrer nos indivíduos que possuem o fator de risco estudado]. Um exemplo dos idos de 2008, dos casos de Mycobacterium abscessus e outras micobatérias de crescimento rápido, que estiveram colonizando materiais cirúrgicos mal higienizados e fake-esterilizados utilizados em cirurgias estéticas de lipoaspiração, implante de próteses e videocirurgias. Que desafio foi achar onde eles estavam! Até determinar que o ponto crítico era a descontaminação muita gente acabou morrendo...


E claro, depois de tudo descrito, analisado, hipotisado e provado, vem a fase quatro: ações de prevenção. Durante um surto, é imperativo  que medidas sejam ser tomadas para impedir novos casos (e novas fontes de infecção). Para cada doença há um ou mais métodos diferentes de remover ou minimizar os fatores de risco. Seja fechar fronteiras comerciais e geográficas, impedir compra, venda, consumo de alimentos e água, bloqueio vacinal... todas as ações têm um efeito imediato e também de curto, médio e longo prazo. Imediatamente o efeito é a quebra na curva ascendente do diagrama de controle, bloqueando os casos incidentes, mas deve-se pensar em ações com efeitos mais duradouros para que a prevalência seja controlada, ou mesmo diminuída, também. 

Aproveitando a onda / empolgação sobre epidemias, o Blog do CDC começa falando do filme "Contagion" - Contágio, no Brasil - e encontrei no site do Com Limão dois videos de divulgação do filme. Confesso que a ideia de colocar bactérias e fungos para crescer no primeiro video foi uma propaganda superlegal - e claro que eu queria ter visto de perto!!! Não sei se o filme é tão bom quanto a propaganda, mas...


 

OK, depois de quatro fases já sei como entender, analisar e prevenir uma epidemia. Mas por quê as epidemias acontecem???

Esse será o tema do próximo post ;-)


Refs:

Este texto foi baseado e adaptado de CDC - Outbreak Investigation: A Cheat Sheet, Sep. 07th, 2011. Uma publicação do CDC - Public Health Matters Blog.

Ministério da Saúde, Brasil:

Departamento de Informática do Sistema Único de Saúde  - DATASUS

Sistema de Informação de Agravos de Notificação - SINAN

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